17 de out. de 2009

Tapa não é carinho: a violência física e a nova Lei



C

Quando o desencanto nos rouba momentaneamente o vigor das batalhas uma boa notícia nos surpreende. Ora vejam: do Congresso Nacional, que gera a cada dia novos escândalos e acordos duvidosos, surge um dos maiores avanços em termos de defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes dos últimos 10 anos no Brasil. Em janeiro de 2006, dois importantes projetos de leis são aprovadas por esta Casa, ambas relacionadas à educação de crianças e adolescentes. Essas leis, a médio e longo prazo, mudarão a trajetória do desenvolvimento e da vida de muitas crianças e jovens no Brasil.

Uma dessas leis se refere à política de financiamento da educação brasileira, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB). Outro projeto de lei, de número 2.654/03, de autoria da Deputada Maria do Rosário (RS), aprovada em primeira instância pela Câmara dos Deputados, também promoverá avanços significativos na educação de nossas crianças e jovens.

Enquanto a primeira lei, que trata do FUNDEB, tem uma aceitação global, a segunda, que pretende erradicar o castigo físico, enfrenta resistências. Opiniões contrárias ao tema têm sido expressas na imprensa local. Porém, tenho dúvidas se a maioria da população realmente conhece, profundamente, as propostas da Lei.

O Projeto de Lei 2.654/03 nasce de uma intensa e histórica luta de muitos profissionais e instituições que atuam na área de defesa dos direitos infanto-juvenis, no Brasil e no mundo. É uma lei polêmica. Até mesmo avançada para a nossa cultura, que infelizmente ainda adota, comumente, a violência física como modelo de disciplinamento das novas gerações. Embora polêmica, a lei teve o primeiro aval dos congressistas.

O uso de castigos físicos na socialização das novas gerações é um fenômeno mundial e histórico. Ao longo do tempo, essa prática tem afetado crianças e adolescentes, independente de seu estágio de desenvolvimento. O número de distúrbios afetivos e comportamentais, de seqüelas físicas e mortes decorrentes do uso da violência física em crianças e adolescentes é alarmante em nosso país. No Brasil, em 1998, foram internadas por essa causa 16.376 crianças menores de dez anos, com predomínio do sexo masculino. Desse total, 56,8% eram menores de cinco anos, sendo representativo o número de internações em menores de um ano (SOUZA; JORGE, 2005). Nas urgências dos hospitais brasileiros, 10% das crianças que se apresentam com menos de cinco anos são vítimas de violência física (AZEVEDO; GUERRA, 1995).

A realidade revelada nos números da violência física no Brasil é aviltante e fere a nossa honra, como nação. Medidas legais que alterem esta realidade são urgentes e necessárias. Vale citar um fato: os países que conquistaram avanços mais significativos na superação da prática da violência física como modelo disciplinar contaram com o suporte legal específico. O Brasil precisava, então, de uma lei que tratasse do tema.

O Projeto de lei 2.654/2003 é fruto de uma luta coletiva e contou com o protagonismo do conceituado instituto LACRI/USP – especializado em estudos na área infanto-juvenil. Esse projeto de lei possui também o respaldo de outras conceituadas instituições, tanto brasileiras como internacionais, como a Save the Children/Suécia, o Instituto Promundo, a Fundação Xuxa Meneghel, a Organização Comunicarte e a Agência de Notícias dos Direitos da Infância (ANDI). Além do apoio de diversas organizações, o projeto de lei atende as recomendações do Comitê dos Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas (ONU).

Atualmente, 15 países proibiram terminantemente, por lei, os castigos físicos contra as crianças e adolescentes. São eles: Suécia (aprovada em 1979), Finlândia (1983), Dinamarca (1985), Noruega (1987), Áustria (1989), Chipre (1994), Letônia (1998), Croácia (1999), Alemanha, Bulgária e Israel (2000), Islândia (2003), Ucrânia e Romênia (2004) e Hungria (2005). Se a lei for aprovada, o Brasil integrará esta privilegiada lista. Outros 25 países estão no mesmo caminho: leis similares estão em tramitação em seus congressos nacionais.
O objetivo do projeto de lei brasileiro não é o de punir os pais. A sua finalidade é conscientizá-los quanto à ineficácia da punição corporal como método educativo, incentivando a busca de alternativas para estabelecer os limites na educação de crianças e de adolescentes. Ela visa ainda contribuir para a formação de um ambiente livre de violências, mais propício ao desenvolvimento saudável de crianças e adolescentes.

O Projeto de Lei 2.654 propõe alterações na Lei 8069/90, do Estatuto da Criança e do Adolescente, assim especificada: “A criança e o adolescente têm direito a não serem submetidos a qualquer forma de punição corporal, mediante a adoção de castigos moderados ou imoderados, sob a alegação de quaisquer propósitos, no lar, na escola em instituição de atendimento público ou privado ou em locais públicos” e “confere especial proteção à situação de vulnerabilidade à violência que a criança e o adolescente possam sofrer em conseqüência, entre outras, de sua raça, etnia, gênero ou situação socioeconômica”.

Outra proposta do Projeto de Lei 2.654 é altera o artigo 1.634 da Lei 10.406, do Novo Código Civil, que passaria a ter a seguinte redação: “Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores: exigir, sem uso da força física, moderada ou imoderada, que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição”.

E mais: estabelece diretrizes para a atuação do Estado com a sociedade: “O estímulo de ações educativas para conscientizar o público sobre a ilicitude do uso da violência contra crianças e adolescentes, ainda que sob a alegação de propósitos pedagógicos; 2) A divulgação de instrumentos nacionais e internacionais de proteção dos direitos da criança e do adolescente, e 3) A promoção de reformas curriculares, com vistas a introduzir disciplinas voltadas à proteção da criança e do adolescente”.

As leis não têm efeitos mágicos – como elixir –, que instantaneamente alteram crenças e atitudes pessoais. Porém, são instrumentos civilizatórios, que auxiliam nas mudanças sociais. Um bom exemplo: a abolição do uso da palmatória e outros castigos corporais nas escolas inglesas, em 1969. Neste mesmo ano, o homem põe os pés na lua e descobre que a Terra é azul. Por que lembro disso? É, no mínimo, estranho o ser humano: mesmo com tantos avanços tecnológicos, conquistados em tão pouco tempo, nós, humanos, continuamos ainda rudimentares no nosso desenvolvimento afetivo e relacional.

Mas voltemos, rapidamente, aos ingleses. As fortes imagens de violência física e psicológica, aplicadas contra crianças inglesas, que o filme The Wall, do grupo Pink Floyd ilustram horror das práticas punitiva e humilhantes. Com metáforas e símbolos, o filme consegue retratar, sem erro e exagero, uma realidade. A violência estava, de fato, presente na vida dos estudantes ingleses.
A eliminação do castigo físico na Inglaterra não aconteceu, naquela época, sem oposição. Uma ampla reação conservadora se levantou contra as medidas que proibiam o uso do castigo físico nas escolas. Mil argumentos foram considerados, alguns com base em supostas teses científicas. Pais e professores se indignaram, manifestando publicamente sua oposição à lei que tratava do tema. Milhares de professores – muitos amorosos e querendo sempre o bem de seus alunos – não conseguiam imaginar como seria possível o processo de educação sem o uso de palmatórias ou de outros instrumentos similares.

Hoje, qualquer pai ou mãe brasileiro, do mais rico ao mais pobre, acharia inconcebível o uso da palmatória como um método pedagógico na educação formal de seus filhos. As grandes conquistas sociais possuem uma dinâmica permanente de contraposição entre forças progressistas e conservadoras. Mas os avanços chegam! E a aprovação do Projeto de Lei 2.654 pode representar mais passo conquistado na longa caminhada que nos levam a construção de práticas educativas não violentas e humilhantes.


Cida Alves - psicóloga com formação em psicodrama terapêutico e em terapia de família e casal, especialista em atendimentos de pessoas em situação de violência, mestre em Educação pelo Programa de Pós-graduação da Faculdade de Educação/UFG e ex-secretária municipal de saúde de Bela Vista de Goiás.

Fonte:
Uma versão de Artigo foi publicada no Jornal O Popular em 25 de fevereiro de 2006. Goiânia Goiás.


10 comentários:

  1. Olá,meu nome é Cristiane Bender sou estudante do curso de Direito em Rndonópolis/MT,gostei muito de sua matéria, pretendo fazer minha mnografia a esse respeito mas confesso que acho pouco provável uma criança ser totalmente educada sem nunca ter levado uma palpamadinha que seja, pois o medo e o respeito andam juntos, e hoje os jovens até mesmo em sala de aula não tem o mínimo respeito por seus professores pois abacabou aquele medo de que o mestre está numa posição superior a sua! Educar hoje passou ser uma tarefa muito difícil! Gostaria de ler mais artigos a este respeito...obrigada!

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  2. Querida Cristiane Bender,


    Quando fiquei grávida de minhas filhas tomei uma decisão: quero educá-las sem a “pedagogia” dos tapas, dos beliscões, das chineladas e dos cintos.

    Não foi fácil, tive que desenvolver uma elevada autodisciplina e habilidade emocional para enfrentar situações inusitadas e às vezes angustiantes.

    Mas com ajuda de meu esposo, irmãos e de importantes orientações que consegui estudando sobre o desenvolvimento infantil e as práticas educativas positivas eu consegui.

    Acredito que essa decisão foi a mais importante que tomei no meu papel de mãe. Não me arrependo.

    Tenho muito orgulho de ter conseguido interromper o ciclo de violência que se perpetuava há várias gerações em minha família.

    Atualmente minhas filhas estão com 15 e 13 anos e a cada dia fico mais impressionada com suas habilidades intelectuais e emocionais.

    Mas o que mais me encanta nas duas é o seu senso de justiça e solidariedade. Gostaria muito que todas as crianças pudessem ter a mesma oportunidade que as minhas filhas tiveram, por isso, defendo a lei que visa erradicar qualquer prática de violência na educação e no cuidado de crianças e adolescentes.

    IMPORTANTE:

    Faça sua monografia sobre esse tema
    não vai se arrepender.

    Conte comigo, eu me comprometo a repassar uma vasta bibliografia sobre o tema da
    violência física intrafamiliar.

    Se precisar de minha ajuda entre em contato e deixe o seu e-mail para nos corresponder.

    Um abraço carinho

    Cida Alves

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  3. Querida Cida, assim como a colega do comentário acima, sou formanda em Direito e minha monografia terá como tema "A violência física contra crianças e adolescentes: os limites entre a agressão e a educação". Abordarei a "Lei do Tapinha" e gostaria muito que vc, se possível, me enviasse material e me indicasse bibliografia!!!
    Aguardo sua resposta.
    Grata.
    Abraço,
    Josilene Rêgo.
    PS: Meu e-mail é josirego50@yahoo.com.br

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  4. Bom dia Josilene,

    Enviei para o seu e-mail duas lista de referências bibliográficas, uma sobre o conceito de violência e outra com pesquisas que tratam especificamente da violência física.
    Acredito que essa biobrafia o ajudará em seu trabalho.

    Se tiver tempo leia também a minha dissertação. Ela está acessível no blog Educar sem violência.

    O primeiro e o segundo capítulo lhe ajudará muito em sua pesquisa.

    Tenho ainda uma resolução da OEA que é muito importante, mas essa eu só tenho cópia em xerox. Teríamos que combinar como posso enviar para você.

    Faço questão em lhe ajudar no trabalho.
    Sempre que precisar entre em contato.

    Tenho certeza que fará um excelente TCC.

    Abraços Carinhosos
    Cida Alves

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  5. Bom dia Cida Alves!
    Realmente resolvi fazer minha monografia sobre Maus Tratos em meu Município, é uma pesquisa de campo que estou fazendo, gostaria muito sim que vc estivesse me orientando sobre algumas bibliografias!Desde ja lhe agradeço obrigada!
    Um forte abraço!
    Meu email é: cristiane_cardozobender@hotmail.com

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  6. Olá!!!Estou me formando e também terei como tema: "A punição do filho sob à luz do poder familiar e da lei da palmada". Gostaria que se possível tb, vc me enviasse material e me indicasse bibliografia!!!
    Fico no aguardo!Desde já obrigada!!

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  7. Meu email é: viviannefreitas@hotmail.com

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  8. Querida Vivianne,

    Você encontrará indicações de leitura no link Referências do Blog Educar Sem Violência. Pesquise também nos link's Orientações e Campanhas. Se necessitar de mais informações entre em contato comigo pelo e-mail cidaalvesgyn@gmail.com. Será um prazer de lhe ajudar.

    Abraços carinhosos

    Cida Alves

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  9. Cida, acho muito bonito vc ter conseguido educar sua meninas sem dar uma palmadinha, mas creio que nossa realidade é bem outra. O limite aos filhos é primordial na nossa convivência, e infelizmente é uma minoria que consegue. Sei que o diálogo é super importante e necessário, mas tem filhos que não entendem e nem aceitam. Não se deve espancar ninguém, mas as vezes um tapa bem dado na hora certa, é relevante. Minha tese será contrária da sua, mas se puder me mandar sua bibliografia pesquisada vou agradecer. Sou Télma Caetano e meu email é zezaomotosenautica@hotmail.com
    abraços.

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  10. Estimada Télma Caetano,

    Gostei muito da sua franqueza!

    Não sei em que linha de pesquisa atuará ou que método orientará o seu trabalho de investigação, mas com certeza você terá uma pedreira pela frente para defender a sua tese.

    É que as pesquisa nacionais e internacionais mais conceituadas encontram evidencias que contestam a sua tese inicial.

    Só para você ter uma ideia, recentemente foi divulgado na imprensa nacional as pesquisas da psicóloga Joan Durrant, da UNIVERSIDADE DE MANITOBA, e do o assistente social Ron Ensom, do HOSPITAL INFANTIL DE EASTERN ONTARIO. Essas pesquisas se caracterizam em estudos longitudinais que duraram 20 anos e contaram com 36 mil participantes.

    A conclusão de Durrant e Enson: "Nenhum estudo mostrou que a punição física tem efeito positivo, e a maior parte dos estudos encontrou efeitos negativos".

    E mais, os estudos analisados por esses pesquisadores americanos evidenciam uma associação clara entre essa forma de punição e problemas como depressão, ansiedade e vícios, que podem começar na infância e se estender para a vida adulta.

    Você pode saber mais sobre essa pesquisa nas postagens abaixo:

    Pesquisa confirma que palmadas não trazem resultados positivos na educação das crianças (http://toleranciaecontentamento.blogspot.com.br/2012/04/pesquisa-confirma-que-palmadas-nao.html)

    Palmada não educa, conclui análise de 20 anos de pesquisas (http://toleranciaecontentamento.blogspot.com.br/2012/04/palmada-nao-educa-conclui-analise-de-20.html)

    As referências que deram suporte teórico as minhas pesquisas científicas estão nos links do blog Educar Sem Violência:

    ARTIGOS(http://artigoscida.blogspot.com.br/);

    CAPITÚLOS(http://educarsemviolencia.blogspot.com.br/);

    MONOGRAFIA(http://monografiadacida.blogspot.com.br/); e

    DISSERTAÇÃO (http://cidadissertacao.blogspot.com.br/).

    Você ainda pode ter acesso a outros trabalhos científicos no site da Rede Não Bata Eduque(http://www.naobataeduque.org.br/problemas/introducao).

    Agradeço a sua atenção ao blog Educar Sem Violência e me coloco a disposição para orientações e demais sugestões de referências.

    Abraços carinhosos

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