17 de out. de 2009

As vozes que pedem eco



"Dissestes que se tua voz tivesse força igual à imensa dor que sentes,
teu grito acordaria não só a tua casa, mais a vizinhança inteira".

Há tempos - Legião Urbana


De todas as crianças e adolescentes que atendi, guardei fragmentos de esperança e beleza. Com seus olhos compridos em direção aos brinquedos da sala de terapia, elas perguntavam meio que num rasgo de liberdade:

_ “Posso brincar”?
_ “Posso gritar, mas gritar bem alto aqui na sala”?
_ “Não preciso falar daquilo agora, ou preciso”?

Na vontade expressa de brincar, de sonhar, de poder ir até o limite de sua voz, sem coerção; e no desejo de não falar, sempre, de sua ferida, um importante aprendizado ficou! Essas pequenas criaturas me conduziram como terapeuta a um caminho “sagrado”: o da infância. Nesse caminho percebi que a alegria, o prazer e o encantamento seriam potentes bálsamos para a dor. Mas percebi também, que teria que suportar, sem panos quentes, a visão, o cheiro e a cor da ferida. Teria que atravessar descalça o deserto de seus dramas.

No entanto, ao viajar pelos territórios inóspitos da criança sempre encontrava oásis de riqueza e força emocional. Nesses momentos, ficava com a sensação de que mais importante do que me levar ao reconhecimento das suas dores e aridez, as crianças queriam me mostrar o tamanho de sua força e também as vicissitudes que existiam em suas vidas. Elas lutavam para não falar só do abuso ou da violência sofrida, pois queriam que sua identidade e o seu relacionamento comigo não fosse construído somente com que estava desestruturado na sua vida e na de seus familiares. Elas queriam que as vissem “inteiras e não pela metade” (trecho da música comida da banda de rock Titãs). Lutavam como bravas por sua identidade e valorização.

No tumulto de suas pequenas vidas, sempre me surpreendia com seus ímpetos de saúde e crescimento. E como as crianças, às vezes, eu também devaneava. Tornava tudo exato, simples e dizia para mim mesma:

_ “Bem, a terapia está indo legal. Agora é só questão de tempo e paz. Logo suas feridas serão cicatrizadas”.

Como é doce a fantasia! Mas a realidade não se apresentava tão simples assim. A terapia era abandonada, os responsáveis se mudavam para longe. Disputas judiciais tencionavam a mãe, que logo se afastava alegando falta de condições para o transporte. Mães que não compareciam, pais, padrastos e tios que nunca, nunca eram encontrados. Depois de uma boa dose de realidade, o óbvio se apresentava com toda a sua dureza peculiar. Não era só da criança e de mim que o rumo de sua vida dependia.

Da mesma forma que as crianças foram impelidas a uma relação abusiva, pelos desejos e afetos inadequados do mundo adulto, dependerá deste mesmo mundo o resgate de sua infância e integridade.

Cabe, então, a todos nós adulto – sejamos pais, psicólogos, médicos, advogados, conselheiros, jornalista etc. – uma fração de desejo e de afeto que nos movimente num sentido de proteger e cuidar da infância. Não podemos permitir que “só o acaso estende os braços a quem procura abrigo e proteção” (Há tempos - Legião Urbana). Precisamos nos comprometer com o significado que a violência vai assumir na vida da criança. Precisamos interromper o ciclo da violência, prevenindo novos abusos.

Todas as crianças que atendi deixaram fortes marcas em mim. Com suas dissonantes vozes me fizeram um pedido:

_ Escute-me sem julgamentos;
_ Não me vejam aos pedaços;
_ Não roube de mim o resto da minha infância, da minha vida e do que sobrou de minha família;
_ Suportem o meu estridente grito;
_ Dê-me eco, voz;

Para que esses pedidos possam ser atendidos, precisamos nos afastar da idéia individualista de auto-suficiência profissional e nos aproximar da idéia de co-responsabilidade e co-dependência institucional. Um fenômeno tão complexo como o abuso sexual, seja ele praticado por familiares, conhecidos ou estranhos – não tem uma solução rápida e isolada. Uma intervenção com ações integradas entre vários segmentos sociais (educação, assistência social, saúde, conselhos tutelares, delegacias e juizados especiais, promotorias e organizações não governamentais) é fundamental.

Só uma rede de cuidado e proteção – de nós firmes e de fios flexíveis – garantirá uma real competência às instituições que tem como tarefa proteger e cuidar de crianças, adolescentes e mulheres que sofrem alguma forma de violência.

A proteção tem que ser integral, tem que envolver os familiares e a comunidade. Temos, assim, que assistir os familiares que estão envolvidos direta ou indiretamente, nos crimes sexuais. Eles também precisam de apoio e orientação.

A indignação diante da violência, que é extremante saudável para as crianças e também para a sociedade em geral, não pode se confundida com a parcialidade burra, que ofusca a complexidade da relação abusiva de caráter sexual. Nem tampouco a justiça e a responsabilização, que são essenciais no processo de enfrentamento da violência, ser confundida com um mero movimento de revide ou de vingança.


Cida Alves, psicóloga com formação em psicodrama terapêutico e em terapia de família e casal, especialista em atendimentos de pessoas em situação de violência, mestre e doutoranda pelo Programa de Pós-graduação da Faculdade de Educação/UFG.

Fonte: Uma síntese desse artigo foi publicada no Jornal Gazete Popular em 17 de maio de 2002.
Vejam abaixo a letra inteira das músicas utilizadas nos textos:

Há Tempos

Legião Urbana
Composição: Dado Villa-Lobos/Renato Russo/Marcelo Bonfá

Parece cocaína
Mas é só tristeza
Talvez tua cidade
Muitos temores nascem
Do cansaço e da solidão
Descompasso, desperdício
Herdeiros são agora
Da virtude que perdemos...
Há tempos tive um sonho
Não me lembro, não me lembro...
Tua tristeza é tão exata
E hoje o dia é tão bonito
Já estamos acostumados
A não termos mais nem isso...
Os sonhos vêm e os sonhos vão
E o resto é imperfeito...
Dissestes que se tua voz
Tivesse força igual
À imensa dor que sentes
Teu grito acordaria
Não só a tua casa
Mas a vizinhança inteira...
E há tempos
Nem os santos têm ao certo
A medida da maldade
E há tempos são os jovens
Que adoecem
E há tempos
O encanto está ausente
E há ferrugem nos sorrisos
Só o acaso estende os braços
A quem procura
Abrigo e proteção...
Meu amor!
Disciplina é liberdade
Compaixão é fortaleza
Ter bondade é ter coragem (Ela disse)
Lá em casa tem um poço
Mas a água é muito limpa...

Comida
Titãs
Composição: Arnaldo Antunes / Marcelo Fromer / Sérgio Britto

Bebida é água!
Comida é pasto!
Você tem sede de que?
Você tem fome de que?...
A gente não quer só comida
A gente quer comida
Diversão e arte
A gente não quer só comida
A gente quer saída
Para qualquer parte...
A gente não quer só comida
A gente quer bebida
Diversão, balé
A gente não quer só comida
A gente quer a vida
Como a vida quer...
Bebida é água!
Comida é pasto!
Você tem sede de que?
Você tem fome de que?...
A gente não quer só comer
A gente quer comer
E quer fazer amor
A gente não quer só comer
A gente quer prazer
Prá aliviar a dor...
A gente não quer
Só dinheiro
A gente quer dinheiro
E felicidade
A gente não quer
Só dinheiro
A gente quer inteiro
E não pela metade...
Bebida é água!
Comida é pasto!
Você tem sede de que?
Você tem fome de que?...
A gente não quer só comida
A gente quer comida
Diversão e arte
A gente não quer só comida
A gente quer saída
Para qualquer parte...
A gente não quer só comida
A gente quer bebida
Diversão, balé
A gente não quer só comida
A gente quer a vida
Como a vida quer...
A gente não quer só comer
A gente quer comer
E quer fazer amor
A gente não quer só comer
A gente quer prazer
Prá aliviar a dor...
A gente não quer
Só dinheiro
A gente quer dinheiro
E felicidade
A gente não quer
Só dinheiro
A gente quer inteiro
E não pela metade...
Diversão e arte
Para qualquer parte
Diversão, balé
Como a vida quer
Desejo, necessidade, vontade
Necessidade, desejo, eh!
Necessidade, vontade, eh!
Necessidade...

3 comentários:

  1. Cida, seu artigo me emocionou. Que tenhamos saúde para continuar nos indignando diante da violência e coragem para atuar contra ela.
    Parabéns pelo blog.

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    1. LuciaLuciana Hayashi,

      Aqui em meu estado existiu um poetiza maravilhosa, a Cora Coralina.

      Os poemas dela sempre me inspiram. Ao ler o seu comentário, me recordei de um em especial. Ele diz assim:

      “Nada do que vivemos tem sentido, se não tocarmos o coração das pessoas”.

      Fico muito feliz por ter tocado o seu coração.
      Daqui de longe, sinto que ele é um coração valente!

      Luciana Hayashi, lembre-se sempre, as crianças precisam de corações valentes que as protejam.

      Abraços carinhosos.

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